O novo governo mundial estava prestes a ser instaurado e todos os manifestantes contrários desapareceram de modo suspeito. Nos jornais da internet não se falava nada contrário ao novo regime. A liberdade, esta mesma que buscavam os habitantes do início do segundo milênio, os de agora não conheciam, nem sequer sabiam que estavam presos. Não viam, não ouviam, não sabiam de nada.
Capítulo I
Peterson era o único a questionar-se na sua casa, mas seus tutores, Robson e Luíz, diziam para ele ficar quieto, não buscar onde não devia, muito menos sair pelas ruas anunciando que estava insatisfeito com o sistema, visto que esse sistema foi resultado de buscas incorretas do passado, por tiranias camufladas de direitos. Talvez tenha sido esse o mal do século, mas ninguém lembrava mais, pois a memória coletiva pode ser manipulada, é dizer, pode-se criar uma memória e fazer com que todos compartilhem dela como única e verdadeira.Abaixo da data de um dos poucos jornais impressos, podia-se ver em letreiros gigantes que o futuro já tinha passado e que agora se vivia a eternidade. De fato, os seres humanos chegavam a viver duzentos anos, mas para isso, aos cento e vinte, eles se submetiam a uma cirurgia que reconstituía noventa por cento do material orgânico do cérebro, o que fazia com que muitos pacientes perdessem a memória longa - aquela em que lembramos de fatos distantes no tempo. Curiosamente, esta perda nunca ocorreu com os governantes do novo mundo.
Na campanha para a presidência do mundo, este era o slogan oficial do único partido concorrente: "Bem vindo ao novo mundo". Não se questionava nem sequer essa frase, visto que o mundo jazia há milhares de anos, não era novo, nem mesmo mais um mundo. Era uma bola no espaço tão caótica como nunca antes. O tom azulado dava lugar ao marrom escuro. Isso aconteceu na metade do segundo milênio, quando defensores da teoria do aquecimento global resolveram jogar uma substância, a qual nunca foi revelada a composição, em todos os mares do planeta que acabaram se tornando escuro, fazendo com que um terço das espécies marítimas morressem. As outras sobreviventes se adaptaram às águas escuras, sofreram mutações e algumas passaram a viver nas costas de todos os continentes. Depois disso, o planeta não pôde mais refletir os raios solares para o espaço e aí sim a temperatura global se elevou em níveis catastróficos. Mais de três bilhões de pessoas morreram em cinquenta anos devido a esse fator.
Porém, com todos esses dados, os habitantes desta bola marrom estavam felizes, pois de nada sabiam. Viviam em casas segmentadas, não haviam distinção entre elas, eram todas praticamente iguais. Não existia família, mas sim núcleos tutelares. As crianças nasciam por inseminação artificial e eram incubados em máquinas. Todo processo de criação de crianças era monitorado. Após completar-se três meses, dois tutores eram selecionados pelo Estado para cuidarem daquela nova criança.
Foi assim que Peterson nasceu, no dia 5 do mês de Hamà do ano de 3015. Foi entregue aos seus tutores que receberam por isso o direito de viverem numa casa no centro da cidade. Peterson era mais um. Seu número, 492.330.045 representava que ele era uma criança regulamentada e liberada para existir. No mundo, corrijo, no novo mundo, era permitida apenas a existência de 500 milhões de habitantes.
Aos dois anos, Peterson já estava estudando na escola secular. Era um prédio muito grande, ocupava dois quarteirões e no meio dele, tinha uma via em que circulavam os automotores. o prédio podia ser visto a longa distância, pois era muito alto e tinha o formato de uma pirâmide. No topo dele, apenas o reitor podia entrar. Em algumas noites, era possível ver feixes de luzes saindo do topo e entrando na estratosfera.
Quando Peterson estava prestes a concluir o último ano nesta instituição, seu orientador educacional pediu para que ele fosse no penúltimo andar para conversar com o subdiretor. Ele ficou muito preocupado, pois nunca havia passado no terceiro andar, onde ficavam as salas de anatomia extra-humana. Ao acessar o ascensor, viu que o último número do display indicava até o andar 7, mas desta vez, quando o display apontou esse número, apareceram alguns caracteres. O emissor, que o estava acompanhando, tirou o óculos escuro e pôs sua cara próximo a um indicador. Após isso, o número 7 desapareceu e em seu lugar apareceu o número 10.
Após as portas se abrirem, Peterson seguiu o emissor até a sala 665, onde o subdiretor estava. Entrando lá, ele se sentou e ficou esperando o subdiretor virar a cadeira ao qual estava sentado para conversar com ele. Esta sala era muito grande para uma pessoa só ocupar. As paredes, lisas, refletiam muita luz, mas mesmo assim a sala era escura. Passado alguns minutos, Peterson achou estranha a atitude do subdiretor não virar-se para falar com ele. Ficou com medo de levantar a voz, mas mesmo assim indagou um "estou aqui", mas não teve resposta. Ficou desconcertado, olhando para todos os lados, até que olhou para os seus sapatos e viu um líquido vermelho. Tirou os pés do lugar e viu que aquele líquido era sangue e estava vindo da direção da cadeira do subdiretor. No mesmo momento, pensou em gritar e chamar alguém, mas por algum motivo, resolveu ir até a cadeira em que estava o subdiretor. Quando conseguiu ver o rosto dele, o mesmo estava todo desfigurado e no lugar dos olhos, haviam dois vãos escuros. Ficou espantado e imóvel, até que conseguiu ouvir uma voz sair daquela figura medonha que estava sentada a sua frente.
- Você tem que parar isso!
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Continua.